segunda-feira, março 27, 2006

Vivo só o Me Cercar; parte 1

(Pretendo comentar o poeta Fernando Pessoa por partes. Esta primeira saiu maior, porque é a introdução-síntese, mas prometo que as próximas serão mais curtas e ainda mais sintéticas.
Isto faz parte de uma espécie de leitura-estudo que venho fazendo do poeta. Arrependi-me de não ter feito isso na leitura na obra de Vinícius de Moraes e por isso pretendo expor aqui o que venho descobrindo a cada fase, dividindo com o AsquintaS os melhores momentos dessas leituraszinhas de relaxamento, que são ótimas, eu acho.
É possível que no final eu faça correções (muitas quem sabe!) devido a interpretações errôneas. Portanto, perdoem-me a ignorância literária e perdoem-me mais ainda os conhecedores deste nobre poeta. Diletante eu cá: café com leite!)


*trechos extraídos da edição “Fernando Pessoa – Obra Poética”. Companhia José Aguilar Editora. 1969, Rio de Janeiro.


“Vivo só o Me Cercar”.

Em poucos momentos em minha vida tive tanta dificuldade de explicar alguma coisa. Isso porque (acredito eu) uma boa explicação depende de aspectos essenciais, tais como correspondência, linearidade, clareza, amplitude. E se, numa grande obra tal qual a poesia de Fernando Pessoa estes elementos remetem a outros que são quase que seus opostos na noção comum – o que faz a correspondência depender do desprendimento, a linearidade do diverso, a clareza da omissão, a amplitude da simplicidade –, a tarefa se torna ainda mais aventureira do que comumente seria comentar um poeta.
Na verdade, eu estou querendo dizer que para “adentrar” Fernando Pessoa é preciso, de início, compreender a forma com que ele, para alcançar o cerne de sua idéia de poesia e de vida, diverge de um conjunto de atos e hábitos tão necessariamente comuns e determinantes na vida social; como ele dispensa o usual; toma o necessário enquanto evitável, enquanto algo a ser abolido, esquecido. Mas além disso, como ele, poeta, julga necessário evitar a busca constante de interpretar (como assim evitar, não é isso que faz um poeta!?) a tudo e a todos. Tudo isso para encontrar no resultado deste avesso completo uma capacidade extraordinária de se comunicar e ser amplamente reconhecido e compreendido pelos verdadeiros cultivadores de tudo que ele pretende abolir. Cultivadores que na verdade somos nós mesmos, caros amigos.

Afinal, ir de encontro a uma série de filosofias em voga em Portugal e no mundo, propondo um estilo de vida distinto para o homem sem mesmo admitir que o propôs, só o possibilitou um diálogo claro, direto e maleável com os leitores de sua obra. É claro que, como todo grande gênio,foi incompreendido por sua época. Mas ele não via problema nenhum nisso, até porque soube bem reconhecer o quanto geraria polêmica a sua forma de descordar da poesia que até então era feita em Portugal, mas precisamente no chamado movimento da “Renascença Portuguesa” – fins do séc. XIV e início do séc. XX. “Sei bem pouca a simpatia que o meu trabalho propriamente literário obtém na maioria daqueles meus amigos e conhecidos, cuja orientação de espírito é lusitanista ou saudosista; e, mesmo que não o soubesse por eles mo dizerem ou sem querer-mo deixarem de perceber, eu a priori saberia disso, porque a mera análise comparada dos estados psíquicos que produzem, uns o saudosismo e o lusitanismo, outros a obra literária no gênero da minha, e da (por exemplo) do Mário de Sá Carneiro [seu amigo e companheiro em linha poética], me dá como radical e inevitável a incompatibilidade de aquêles para com estes”.
Tal como se percebem nos termos utilizados por ele, à sombra de Camões permanecia a poesia de Portugal. Ainda o saudosismo à pátria lusitana sob um conjunto de caracteres identitários talvez mais antigos e cansativos do que o próprio Camões. Mas um novo movimento, o de um homem só repartido em muitos (através da heteronimia), intumesce o movimento que lança à frente da poesia lusitana a figura que porá Camões, definitivamente, na história. O movimento de um homem faz de um homem um movimento. “E isto leva a crer que deve estar para muito breve o inevitável aparecimento do poeta ou poetas supremos dessa corrente da nossa terra, porque fatalmente o Grande Poeta, que este movimento gerará, deslocará para segundo plano a figura até agora primacial de Camões (A nova Poesia Portuguesa, p. 27)”.
Mas o que teria proposto ele de tão polêmico, revelador e que foi tão amplamente reconhecido? O quê em sua poesia nos faz remeter tanto à nossa própria forma de levar a vida? O que há nela para ser transformada com Pessoa?
Por Rodrigo Lessa

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