quinta-feira, junho 01, 2006

Interpretações Em Sociologia - 2a Parte

(Segue o restante do texto. Leitor, vide esclarecimentos sobre este texto em "Interpretações Em Sociologia 1a Parte").

II. Em A Representação do Eu Na Vida Cotidiana, E. Gooffman elabora um manual sobre alguns aspectos da representação dos indivíduos quando em relação com outrem. A fachada existe para ele como um desempenho do indivíduo na forma de equipamento expressivo direcionado a definir a situação para os observadores da representação (Goffman, 1985). A configuração da fachada leva em conta um “cenário” – espaço físico propriamente dito - e o que poderia chamar-se de “fachada pessoal”, reunido aqui os itens expressivos de caráter íntimo: vestuário, atitude, padrões de linguagem, etc.
Esta fachada pessoal, ainda em Goffman, pode ser dividida em “aparência e maneira, de acordo com a função exercida pela informação que estes estímulos transmitem. Pode-se chamar de “aparência aqueles estímulos que funcionam para nos revelar o status social do ator (...) e maneira os estímulos que funcionam no momento para nos informar sobre o papel de interação que o ator espera desempenhar na situação que se aproxima”.
O primeiro contato dos forasteiros com Heráclito apresenta sem dúvida uma composição bem particular deste tipo de representação. Temos de início um cenário - que corresponde ao humilde abrigo de Heráclito - e uma fachada pessoal - o que poderia se definir como o seu comportamento - em evidente estado de desarticulação lógica ou habitual, por assim dizer, com a sua condição de sábio. Embora o papel a ser cumprido por ele ali seja realmente o de um sábio, reafirmado pelo diálogo que irá travar com os forasteiros (a não ser que ele se negue mesmo a faze-lo), o cenário de representação em que ele atua, tal qual a maneira e a aparência que ele transmite, não estão condizentes com a expectativa dos forasteiros, que de alguma forma reproduz a perspectiva comum. Esta expectativa estava direcionada a “traços do excepcional e do raro e por isso do emocionante”, o que de fato não foi sugerido neste “fato comum e sem encanto, de alguém estar com frio perto do forno”. Daí o estranhamento.
E tudo por um motivo bem simples: “além da esperada compatibilidade entre aparência e maneira, esperamos naturalmente certa coerência entre ambiente [cenário], aparência e maneira”. A percepção do comportamento de um sábio, e portanto do significado a que o conceito remete, é visivelmente diferente entre o filósofo e os forasteiros; logo, incompatível aos olhos destes. Por qualquer motivo a elaboração mental que cada agente faz de um sábio não tem uma proximidade muito clara: para Heráclito não há problema em parecer simples, mas aos curiosos isso é um motivo de desconfiança sobre a sua condição de sábio.
Entretanto, de forma alguma poderíamos concluir como sendo precipitada a conduta dos forasteiros: tomar a aparência pelo conteúdo é algo altamente comum e em alguma medida intrínseco as relações humanas, pelo simples fato de ser dificílimo encontrar nas ações dos indivíduos, dicas do que eles são na realidade. “Em resumo, como a realidade em que o indivíduo está interessado não é percebida no momento, em seu lugar terá de confiar nas aparências. (...) É aqui onde os atos comunicativos se traduzem em atos morais. As impressões que os outros dão tendem a ser tratadas como reivindicações e promessas que implicitamente fizeram e estas tendem a adquirir um caráter moral” (Ibdem). É imprescindível, pois, que depositemos nas relações um mínimo de segurança, ainda que superficial, sobre como nosso interlocutor irá responder aos nossos estímulos.
(Vejam como os padrões e valores de que falamos só existem através da interação, e por isso se mostram passíveis a – constantes – re-interpretações de seu significado ou necessidade, por assim dizer).
III. Porém, de algum modo, Heráclito parece ter tido consciência disso. A reação dos curiosos lhe pareceu um tanto previsível pela reação que lhe acometeu, em “recorrer” aos deuses para garantir que entrassem e satisfizessem a sua curiosidade. E para isso também existe um motivo bem particular. “É sabido que, desde Heráclito até Isócrates, soa um único brado:‘Todas as leis humanas são alimentadas pela lei divina’” (Touchard, 1970).
É bastante sólida em sociologia a idéia de que os costumes que envolvem a religião ou algum tipo de divindade particular remetem às raízes morais mais profundas em que se fundamentam as sociedades. Os mitos e crenças possibilitam uma força cultural eficiente para manter grupos sociais moralmente integrados e portanto comprometidos com a unidade da sociedade. “Pelo simples fato de terem por função aparente estreitar os vínculos que unem o fiel ao seu deus, elas ao mesmo tempo estreitam realmente os vínculos que unem o indivíduo à sociedade da qual é membro, já que o deus não é senão a expressão figurada da sociedade” (Durkheim, 1996). Com os gregos não parece ter sido diferente. Destarte, podemos sugerir o modo com Heráclito se valeu deste recurso tentar para manter próximos os curiosos que pretendiam se afastar.
G. H. Mead, um dos responsáveis pelos fundamentos do interacionismo simbólico, destacava a idéia de que o indivíduo realiza a sua condição de pessoa através da sociedade, quando esta dispõe, pela comunicação, a substância cultural de que ele deve se valer para tomar consciência do mundo e de si mesmo. É só através dela que o sujeito pode aparecer como pessoa no mundo externo, reunindo, de todas as suas experiências de convivência, a estrutura social de sua personalidade e colocando-se na condição de sujeito e objeto do próprio pensamento (Mead, 1953).
Este processo permite ao sujeito não só tomar uma consciência de si mesmo, quando sua própria pessoa passa a ser um objeto de seu pensamento, como também tratar as outras pessoas como um objeto do pensamento, e com base na bagagem cultural experimental de sua própria vida medir os tipos de interferência que pode suscitar nas outras pessoas. O sujeito “adopta el lenguaje como um médio para obtener su personalidad, y luego, a través de un processo de adopción de los distintos papeles que todos los demás proporcionam, consiegue alcanzar la actitud de los miembros de la comunidad” (Ibdem).
Para alcançar esta experiência anterior Heráclito se vale do que Mead denomina “el mí”, ou “mim”: a pauta de relações que um sujeito apreende em sua vivência para se manter em sociedade, e ser reconhecido por ela. Logo que ele capta este rol de atitudes torna-se por sua vez capaz de responder aos estímulos dos outros indivíduos em sociedade, na forma com que tais estímulos acionam nele as possibilidades de resposta, o que corresponde portanto ao “yo”, ou o “eu”. Ora, se as experiências variam de pessoa pra pessoa, e portanto a pauta de relações é em alguma medida imprevisível, podemos entender como Heráclito foi capaz de suscitar tal estímulo encorajador nos curiosos. Tendo a possibilidade de tomar os forasteiros como objeto do pensamento, e por isso prever a qualidade de uma sua interferência, se valeu da própria pauta de relações para responder de modo criativo, lógico e principalmente moral, à reação dos visitantes. E no caso particular da Grécia, naquele período, nada mais moralmente universal e conciso do que demonstrar proximidade com as leis e predisposições divinas. Heráclito pretende com isso se fazer próximo do divino, e através dele próximo do que é mais elementar na cultura moral de seus semelhantes. Isso, é claro, se os visitantes participam de um universo cultural próximo.
Conclusão. O que o eminente filósofo pretende evitar com sua estratégia é na verdade uma ruptura. A surpresa dos curiosos é causada por uma quebra, mudança ou re-significação na noção moralmente disseminada do “sábio”: alguém com uma fachada que faça jus à sua existência, ao papel que corresponde a sua condição. Heráclito poderá provar com esta primeira lição como estas representações, embora tidas como verdadeiras, são contingentes, culturalmente elaboradas. Uma consciência do funcionamento da sociedade nos permitiria exercitar melhor a capacidade de inovar e transformar hábitos, atos morais de representação, ainda que estes pareçam intrínsecos a um conjunto de papéis que cumprimos socialmente. Humildade não quer dizer indigência, traços do excepcional e do raro não querem dizer sabedoria, tal como culto ao divino. Mas de uma forma ou de outra, estas representações terminam por ser, em alguma medida, eficientes; basta saber lidar com elas.

BIBLIOGRAFIA:

· GOFFMAN, Erving. A representação do Eu Na Vida Cotidiana; tradução de Maria Célia Santos Raposo. Petrópolis, Vozes, 1985.
· BLUMMER, Hebert. Simbolic Interacionism; perspective and method. New Jersey, Inc, 1969.
· GUIDDENS, Anthony e TURNER, Jonathan. Teoria Social Hoje; tradução de Gilson César Cardoso de Souza / JOAS, Hans. Interacionismo Simbólico. São Paulo: Editora UNESP, 1999.
· MEAD, George H. . Espiritu, Persona Y Sociedad; Desde el punto de vista del conductismo social. Buenos Aires: Editorial Paidos, 1953.
· TOUCHARD, Jean. História das Ideias Políticas; tradução e notas de Mário Braga. Lisboa: Europa-América, Ltda, 1970.
· DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa: o sistema totêmico na Austrália; tradução Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

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