segunda-feira, abril 03, 2006

Fernando Pessoa, parte 3, “Vivo só o Me Cercar”

Ao fim deste primeiro texto, transcrevo a primeira parte de um de seus mais lembrados poemas: “O Guardador de Rebanhos”, quando vinculado heterônimo Alberto Caeiro. Não pretendo me adentrar agora ao que se chama de heteronimia de Fernando Pessoa. Até porque, como ainda nem vos disse, só tive contato com os livros “Mensagem”, “Cancioneiro” e “Ficções do Interlúdio”, sendo que este último, o qual eu ainda não terminei, é que corresponde à compilação dos versos de seus três heterônimos mais conhecidos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Por agora fica a informação de que ele assina poesias com nomes fictícios por achar que as poesias feitas por ele quando em mente estes personagens são bastante diversas da sua forma particular de escrever – enquanto Fernando Pessoa –, e segundo ele nem o agrada em alguns momentos. A relação que ele guarda com seus heterônimos é, no entanto, bem mais profunda.
Vou me retirando então para que o leitor possa apreciar o texto. Diz-se que o êxtase que ele sentiu ao “descobrir” Alberto Caeiro foi tão grande que ele escreveu boa parte de “O guardador de Rebanhos” em uma noite.
Por: Rodrigo Lessa

“O Guardador de Rebanhos”
(I9II-I9I2)

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.
Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que
se diz
E quer fingir que compreende.
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural —
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.

Fernando Pessoa

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