Se a abolição da escravidão pariu o desemprego, a abolição da fome vai parir o quê?
(Deja-vi. À segunda feira do dia 14 de março deste ano, um grito ecoou de uma das tribunas da ONU aos ouvidos desatentos dos brasileiros. Disse alguém: “vamos ‘abolir’ a fome, da mesma forma que fizemos com a escravidão!”. Desatento ou não, (brasileiro) eu acho mesmo é que a fome não deva ser “abolida”, no sentido denotado pelo autor do ilustrado comentário. Afinal, abolimos a escravidão e parimos o desemprego: creio que com a fome a hipocrisia irá se repetir. Mas vamos aos fatos...).
Pois bem. Foi em meio ao Fórum Social Mundial, realizado em Davos recentemente. Precisamente na edição do dia 14 de março foi publicada na “Folha” a entrevista de um conhecido sociólogo chamado José Bengala (membro da subcomissão para Promoção e Proteção dos Direitos Humanos e presidente do grupo de estudo de extrema pobreza e direitos humanos, ambos ligados à ONU) trazendo a sua retórica sobre o problema da fome, debatida na explanação que protagonizou no evento.
Segundo ele o eminente problema se resolveria com uma “abolição da fome” no mundo, deslegitimando a sua existência através de um conjunto de normas de caráter internacional que obrigassem os governos de diversos países (em sua maioria subdesenvolvidos) a combatê-la com mais dedicação.
Acontece que esta “ascensão de um sistema jurídico internacional” , como ele mesmo coloca, apontando ainda a globalização dos direitos humanos como um caminho saudável a ser traçado, relembra na alma deste humilde brasileiro a desconfiança de que, sob este pensamento, a fome vai permear a mesma “evolução” hipócrita alcançada com o fim da escravidão. Nesta oportunidade, fingimos que resolvemos o problema enquanto os senhores da miséria e da exploração riam com a conservação de sua agradável dominação exploradora sobre os novos alforriados: os trabalhadores.
Em verdade, a suposta solução dada pelo sociólogo só muda um pouco o foco da frente de luta contra a fome, sem tirar o poder de mudança das mãos de quem já não se mostra interessado em soluciona-la...
Para perceber este detalhe basta se perguntar em poder de quem se encontra a criação de normas jurídicas e os instrumentos para pô-las em funcionamento. De uma elite obviamente. Ela desenvolve ou viola normas conforme o seu interesse, pois detém poder sobre o mecanismo normativo, tratando seus preceitos e princípios a luz de seu livre arbítrio. Ao seu bel prazer a “burguesia, então, reservará a ilegalidade dos direitos: a possibilidade de desviar seus próprios regulamentos e suas próprias leis; fazer funcionar todo um imenso setor da circulação econômica por um jogo que se desenrola nas margens da legislação – margens previstas por seus silêncios , ou liberadas por uma tolerância de fato”, como dispunha Michel Foucault em “Vigiar e Punir”.
A elite não passa fome. E por mais que se sensibilize com a causa dos miseráveis, irá tolerar qualquer ilegalidade se, baseada em seu próprio interesse, não visionar retorno ou ganho em punir. Fortalecer uma campanha em seu meio para cantar novas normas de combate à fome pode até resultar num incremento de novos artigos e regimentos ao rol do sistema jurídico internacional, mas não haverá um esforço deste mecanismo em vias de combate à fome caso não se funde num interesse comum ao da burguesia citada por Foucault.
Ora, poderia restar ainda uma ação dos humanistas convictos, crentes mesmo na sensibilidade humana dessa elite para mover esforços a uma causa tão nobre. Uma grande idéia, se a mesma não detivesse interesses em conflito com o combate a fome.
Prova disso é que do lado de cá da América tem muita gente insatisfeita com a ONU: principalmente no que diz respeito ao FMI e ao Banco Mundial. As sugestões de caráter altamente impositivo destes órgãos sob governos sul-americanos tem obrigado os mesmos a apertar seus tímidos orçamentos dedicados a necessidades básicas – como o combate à fome – , para cobrir juros de dívidas históricas. Dívidas estas que tem como credores países que gastam rios de dinheiro com guerras a supostos “vilões” internacionais.
Mas se os direitos humanos já não são lá tão respeitados assim, buscar “globalizá-los”, com é a intenção de José Bengala, só diminuirá o seu alcance prático. Isso porque a globalização jamais foi algo além de um emaranhado de agentes internacionais debruçados sob um interesse incondicional por negócios de alto poder lucrativo ao redor do mundo, sendo os impactos provenientes de investimento e retirada de capital, questões pouco importantes – dinâmica nas comunicações e tecnologia a serviço da humanidade é só propaganda. Se fábricas fecham e milhares de trabalhadores são postos à rua para passar fome, realmente não importa aos verdadeiros beneficiários da globalização: se o lucro não compensa, lá o seu capital precioso não poderá continuar; (“deverá haver outro lugar onde a mão de obra é mais barata...”).
O posicionamento do sociólogo em tão importante fórum mundial para debates sobre temas relacionados à fome, embora pretendente a ser bem fundamentado e produtivo, denota um contexto que, cá no Brasil, nós conhecemos muito bem. “Abolir” fome – em menção à suposta vitória à supressão da escravidão – não compreende uma proposta responsável, efetiva. E mesmo que historicamente alcançássemos um momento que a propiciasse, repetindo o contexto do fim séc IX, um movimento de deslegitimarão jurídica da miséria – tal como foi deslegitimada a escravidão – com certeza o projeto mais completo e abrangente não passaria de um paliativo. E “abolir” a fome não vai passar de mais uma medida hipócrita.
Com todo respeito aos letrados da ONU: cá nós sabemos de verdade o que significa (ou não significa) uma abolição. E fim de papo.
Rodrigo Lessa
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