Sobre “As formas Elementares da Vida Religiosa”
Os dois capítulos do livro “As formas Elementares da Vida Religiosa” abertos para o próximo encontro do asquintas, traçam uma perspectiva bem interessante sobre o fenômeno social correspondente à pré-fundação da noção de deus na sociedade. Na verdade, trabalharemos com um momento social bastante anterior, mesmo porque o assunto diz respeito ao exame do contexto que envolve o nascimento das religiões nos grupos sociais.
Para exemplificar e dar o toque empírico à explicação, Emile Durkheim trabalha evidências encontradas em tribos australianas. O fenômeno a ser identificado nestas tribos corresponde ao que ele denominou de totemismo de clã, pois se propõe a identificar o quadro social em que o clã cria um universo simbólico com fins de materializar uma espécie de vocação ou potência moral para a constituição de uma pequena sociedade. Esta potência moral se afigura pelos padrões sociais a serem institucionalizados naquele grupo, com fins de manter um mínimo de possibilidade de convivência entre seus membros.
Em suma, existe um conjunto de normas morais que precisam ser seguidas caso qualquer grupo disperso pretenda se unir formando uma unidade social. Como é praticamente impossível convencer estes indivíduos da necessidade de seguir estas normas morais por meios, digamos, verdadeiramente didáticos – “caro conterrâneo, se não seguirmos os padrões coletivos, a sociedade não se forma...” -, o clã fornece indivíduos que criam uma mistificação sobre um símbolo material santificado e passam a afirmar as normas de conduta da sociedade em nome deste símbolo. É como se a igreja católica pretendesse pregar os dez mandamentos, e, sentindo que não convencerá ninguém pelo caminho da necessidade de uma unidade social ou pela altivez das normas que defende, cria a idéia de um ser divino que trouxe os dez mandamentos e disse à Igreja que é ela a responsável pela pregação da verdade. (Peço que não considerem a experiência do cristianismo primitivo ao pé da letra).
Na verdade, o totemismo faz referência a uma atribuição simbólica mais primitiva, ou mesmo inicial, pois corresponde ao exato momento em que um pequeno grupo dá o ponta pé inicial para se unificar. Existe uma tendência nas tribos citadas no texto em tomar a figura de animais como símbolo totêmico. Desse modo, passa a existir o “clã do corvo”, o “clã do urso”, e assim por diante. Estes animais corporificam um significado que no fim das contas serve para obrigar os indivíduos a interiorizarem a moral coletiva, o conteúdo normativo da sociedade.
Pois bem: é assim a sociedade se forma. Um símbolo divino personifica esta potência moral que os indivíduos tem e passa a contribuir para um mínimo de uniformidade ou homogeneidade nas relações entre os indivíduos.
O papel crucial da religião.É interessante perceber com esta análise que, de um certo modo, a religião é essencial na constituição de uma sociedade. Sem ela não existiriam países, Estados, nações ou povos sem território (o fenômeno judeu). Ela mantém a possibilidade desta unidade de padrões sociais, que são insubstituíveis à unificação de um grupo. Tomemos o exemplo de uma língua, ou padrão de linguagem: a noção de falar o idioma “X” é um padrão social. Se não houvesse, talvez, um elemento que garantisse a utilização de apenas um idioma, um mínimo de convivência seria impossível. A sociedade não se formaria sem concidadãos que se comunicassem. Caso uma coerção moral para manter a unidade do idioma fosse necessária num determinado contexto de formação primitiva, por exemplo, provavelmente um dos clérigos envolvidos na revelação da verdade diria que o seu deus o iluminou com a proibição da utilização de qualquer outro idioma que não o escolhido por ele no momento da revelação.
A ciência é (ou foi) foi religiosa.Outro ponto importante encontrado no texto é o fato de o próprio exame científico de noções básicas do mundo físico se encontrar diretamente derivado da perspectiva religiosa encontrada em seu contexto sociológico. Um exemplo claro disso é o que aconteceu com a diferenciação da raça humana quanto a outros espécimes animais. De início algumas religiões atribuíram uma diferenciação indubitável quanto à distinção do homem frente aos outros animais, derivando ele de uma construção apartada e especial do criador, coisa empiricamente refutada ao longo da história. O próprio cristianismo se encarregou de elaborar esta diferenciação com o mito de “Adão e Eva”, embora o primeiro filósofo pré-socrático – e, portanto da história da filosofia –, Tales de Mileto, já tivesse concluído através de achados arqueológicos que o homem teria derivado de outros animais através de um tipo de mutação. O detalhe é que Tales de Mileto viveu no séc. VI a.c. e a principal fundamentação teológica que legitimou o cristianismo primitivo tenha surgido no séc. III, nove séculos depois, com Santo Agostinho e a sua obra “Cidade de Deus”.
Conclusão.Assim, de forma objetiva, será importante examinar com este tema o fato de que a religião é uma produção social, tal como os mitos, crenças e os conhecimentos acerca de sua verdade revelada se traduzem em criações da mente humana para legitimar a transmissão dos ditos padrões sociais. A ciência ainda não define com clareza quais das inúmeras experiências supostamente transcendentais da vida humana são pura imaginação e quais demonstram algum tipo de fato extraordinário. Porém, seria interessante nos manter atentos a como este tipo de fenômeno se encaixa perfeitamente em algum tipo de contexto cultural e simbólico. Como cada movimento com este cunho místico se integra a uma normativa moral que, na imensa maioria das vezes, se pretende uniformizadora de relações sociais.
Alguns trechos elucidativos do texto.“A força religiosa não é senão um sentimento que a coletividade inspira em seus membros, mas projetado pra fora das consciências que o experimentam e objetivado. Para se objetivar, ele se fixa num objeto que, assim, se torna sagrado; mas qualquer objeto pode desempenhar esse papel”.
“Tal é a matéria prima com que foram construídos os seres diversos que as religiões de todos os tempos consagraram e adoraram. Os espíritos, os demônios, os gênios e os deuses de todo porte não são senão formas concretas desta energia, que essa ‘potencialidade’, como diz Howitt, assumiu ao individualizar-se, ao fixar-se num objeto determinado ou em certo ponto do espaço, ao concentrar-se em torno de um ser ideal e legendário, mas concebido como real pela imaginação popular”.
“Com efeito, um deus é antes de tudo um ser que o homem concebe, sob certos aspectos, como superior a sim mesmo e do qual acredita depender. Quer se trate de uma personalidade consciente, como Zeus ou Jeová, quer e forças abstratas, como aquelas postas em ação no totemismo, o fiel, em ambos os casos, se crê obrigado a certas maneiras de agir que lhe são impostas pela natureza do princípio sagrado com o qual se sente em contato. Ora, também a sociedade provoca em nós a sensação de uma perpétua dependência”.
“Podemos dizer, com efeito, que o fiel não se engana quando crê na existência de uma força moral da qual depende e da qual extrai o melhor de si: essa força existe, é a sociedade”.
“Por isso, podemos estar certos de antemão que as práticas do culto, sejam elas quais forem, são algo mais do que movimentos sem alcance e gestos sem eficácia. Pelo simples fato de terem por função aparente estreitar os vínculos que unem o fiel ao seu deus, elas ao mesmo tempo estreitam realmente os vínculos que unem o indivíduo à sociedade da qual é membro, já que o deus não é senão a expressão figurada da sociedade”.
“Agora nos explicamos de onde vem a ambigüidade que as forças religiosas apresentam quando aparecem na história, de que maneira elas são físicas e humanas, morais e materiais ao mesmo tempo. Elas são forças morais por serem construídas inteiramente com as impressões que esse ser moral que é a coletividade desperta nesses outros seres morais que são os indivíduos; elas traduzem, não a maneira pela qual as coisas físicas afetam nossos sentidos, mas o modo como a consciência coletiva age sobre as consciências individuais. Sua autoridade não é senão uma forma da influência moral que a sociedade exerce sobre seus membros. Mas, por outro lado, elas não podem deixar de ser vistas como mito próximas das coisas materiais. Elas dominam, portanto, os dois mundos. Residem nos homens, mas, ao mesmo tempo, são os princípios vitais das coisas. Vivificam consciências e as disciplinam; mas são elas também que fazem que as plantas cresçam e os animais se reproduzam. É graças a essa dupla natureza que a religião pôde ser como a matriz em que se elaboram os principais germes da civilização humana. Posto que ela abarcava a realidade inteira, tanto o universo físico como o universo moral, as forças que movem o corpo e as que conduzem os espíritos foram concebidas sob forma religiosa. Eis aí como técnicas e práticas das mais diversas, tanto as que asseguram o funcionamento da vida moral (direito, moral, belas-artes) quanto as que servem à vida material (ciências da natureza, técnicas industriais), são, direta ou indiretamente, derivadas da religião”.
Rodrigo Lessa